Com seis meses, Hector (nome fictício) começou a frequentar o Centro Municipal de Educação Infantil (Cemei) Valter Peresi, em Votuporanga, no interior de São Paulo. Menos de um mês depois, foi entregue desacordado nos braços do pai. “Dos 6 aos 11 meses, foi um pesadelo. Meu filho passava mal. Ele ficava com a boca torta, olhar longe, vomitava muito e até desmaiava. Fazia exames e não dava nada”, conta a mãe, a educadora infantil Keli Antoniolo, de 35 anos.
O episódio mais grave ocorreu em 5 de outubro de 2018. A criança chegou bem ao Cemei, brincou e se alimentou normalmente. No meio da tarde, as educadoras perceberam que o corpo da criança estava mole. Depois, o bebê vomitou e ficou desacordado. Com dificuldade em descobrir qual era a doença, os médicos diagnosticaram virose. Depois de três dias, Hector teve alta e retornou para a escola.
Em 18 de outubro, apresentou os mesmos sintomas. “Desconfiei que estavam dopando meu filho”, diz Keli. Ela fez boletim de ocorrência e, seis meses depois, foi detectado o medicamento Clonazepam no sangue e na urina da criança. A prefeitura de Votuporanga abriu sindicância no dia 3 de maio deste ano para apurar o caso. Reforçou ainda que os educadores são orientados a dar às crianças só remédios enviados pelos pais, com receita médica.
“Meu bebê estava sendo dopado na creche. Meu sentimento é de revolta e de angústia. De impotência, por não descobrir antes”, disse a mãe. Em 22 de outubro, ela conseguiu transferir o filho para outra escola. “Desde que o meu bebê começou a passar mal, comecei a fazer tratamento para ter apoio psicológico.”
Outros casos
Além da Keli, oito mães suspeitam que seus filhos tenham sido dopados no Cemei. Todos, agora já estão matriculados em outras creches, apresentaram os mesmos sintomas. Não fizeram exame toxicológico, mas têm prontuário médico com quadro clínico semelhante. “Após a divulgação do laudo do filho da Keli, outras mães me procuraram. Esses relatos existem desde 2017. A Secretaria da Educação deveria ter comunicado às autoridades competentes imediatamente”, disse o advogado das mulheres, Hery Kattwinkel.
Carlos (nome fictício), de 2 anos, é filho da funcionária pública Fernanda Oliveira, de 33 anos. Em 26 de abril de 2017, quando tinha apenas seis meses, o menino passou mal no Cemei. “Fazia 15 dias que estava indo ao berçário. Eu o peguei desacordado. Disseram que chorou muito e dormiu. Aí ficou dois dias na UTI. Fizeram ressonância e exames, mas não detectaram nada”, lembrou Fernanda. A criança foi mais um dia à creche e voltou a apresentar os sintomas. Depois disso, Fernanda optou por pagar uma babá para cuidar do filho. “Podiam ter matado meu filho”.
Prefeitura
Em nota, a prefeitura de Votuporanga informa que abriu sindicância investigatória. Segundo a portaria no Diário Oficial do Município, a apuração é necessária por causa da “gravidade das denúncias”. A comissão do município vai acompanhar também o inquérito policial. No fim de 2018, segundo a prefeitura, a secretaria relatou o caso à procuradoria do município após ser procurada pelos pais da criança.
“No entanto, na época não havia exames médicos ou qualquer outro material com embasamento legal que determinasse providências administrativas”, afirmou a prefeitura. Ainda segundo a pasta, todos os profissionais que atuam na educação sabem que nenhum medicamento deve ser administrado nas escolas, com exceção das crianças com receita médica. Além disso, os pais ou responsáveis devem enviar a medicação junto com a receita, informando horário e dosagem.
Riscos
De acordo com a pediatra Maria Cecília Hyppolito, o medicamento Clonazepam – que tem entre os nomes comerciais o Rivotril – só pode ser utilizado com prescrição médica azul, em casos de alterações neurológicas e síndrome do pânico, por exemplo. “É preciso descobrir quem deu o medicamento à criança e quem prescreveu a droga, que pode provocar até dependência química”, explica. A depender da dosagem, o uso pode causar sonolência, irritabilidade e, mais grave, distúrbios neurológicos.
[ads1] Segundo o neurologista Alexandre Meluzzi, a droga tem efeito hipnótico e apaga a memória. “Hoje é usada em pacientes com ansiedade e em casos de síndrome de West, crianças que têm um quadro de epilepsia muito grave. O medicamento tem ações sedativas, anticonvulsivantes e tranquilizantes. Dar esse medicamento sem prescrição médica é crime“. Para as crianças em que há suspeita do uso do remédio, acrescenta, é necessária a avaliação de um especialista. “É preciso verificar se não ficaram sequelas.”
Fonte: Terra.